"Como os profetas, eu estava vendo, com meridiana clareza, o que aconteceria daí em diante, não nos meses seguintes, mas nos séculos seguintes; um relato que poderia dar origem a muitos livros (e eu até imaginava um nome para esses livros, um nome grego, porque grego seria uma língua importante: Bíblia). Animada por uma força misteriosa minha mão escrevia, escrevia febrilmente. No caso do rei: o que poderia suceder a um fescenino babaca que ficava na cama com uma estranha, fodendo e recitando o Cântico dos cânticos, enquanto conspiravam para liquidá-lo? Se escapasse aos punhais continuaria construindo santuários e mais santuários, cultos e mais cultos brotando como cogumelos no esterco, na imundície na qual rolava com as mulheres a quem estava submetido por conta de sua fraqueza, de sua vaidade. O castigo seria inevitável; um castigo que, para seguir o tom geral do texto, eu chamaria de divino: "Então", escrevi, "o Senhor se irritou contra Salomão, porque este desviou o coração do Deus de Israel que lhe tinha ordenado não seguir deuses estranhos. E disse: 'Já que sabias disto, mas não observaste a aliança e os decretos que te impus, vou arrancar de ti o reino para entregá-lo a um dos teus servos. Contudo, em atenção a teu pai Davi, não o farei durante tua vida. Só o arrancarei da mão de teu filho". Narrei em seguida como um revolta, ocorrida no reinado de Roboão, filho de Salomão, dividiu o reino em dois. Descrevi esses reinos dilacerados por conflitos; falei sobre o desespero de profetas que, como eu, tentavam alertar governantes contra perigos da impiedade. Antecipei a ocupação da região por grandes potências estrangeiras, a última das quais senhora de um vasto império e o sofrimento do povo oprimido pelos mandatários estrangeiros, contrastando com a vida regalada dos seus aliados, os sacerdotes do Templo e os potentados locais. A resposta a esse situação só poderia ser a revolta - como a do pastorzinho - mas também o nascimento de uma nova religião. Nela, o Jeová enigmático, autoritário, seria substituído por um Deus-Pai, todo-poderoso, sim, mas ao mesmo tempo misericordioso. E haveria um Filho, com quem as pessoas poderiam se identificar em sua aflição; esse Filho, sob forma humana, pregaria o amor e as justiça, realizaria milagres, curaria enfermos - eu estava lembrando o desespero de minha amiga Mikol, doente e sem ter a quem recorrer. Naturalmente seria sacrificado pelos representantes do Império e seus cúmplices locais, mas ressurgiria de entre os mortos e ascenderia aos céus. Ah, sim, este Filho teria uma Mãe, uma figura feminina muito diferente da Eva ou mesmo das matriarcas (ou da minha omissa genitora), uma Mãe que seria o símbolo da bondade, uma figura feminina mediante a qual os fiéis poderiam apelar ao Pai e ao Filho. A Trindade se completaria com um Espírito Santo, simbolizado por uma ave - não os corvos com quem Salomão gostava muitas vezes de conversar, mas por um puro e inocente pombo, muito diferente dos pombos do palácio, neles incluído os portadores de almas penadas. Em vez de um Templo central, com seus custosos sacrifícios, surgiriam milhares de templos, grandes e pequenos, ricos e pobres, onde todos poderiam comparecer sem problemas, sem oferecer sacrifícios; sacerdotes ouviriam as pessoas e absolveriam seus pecados, livrando-as de nossa milenar culpa. O papo de Povo Eleito acabaria, a nova religião procuraria conquistar adeptos entre todos os povos, terminando inclusive com aquela história de se distinguir dos outros pela circuncisão. Diante da amplitude dessa nova religião, a glória de Salomão simplesmente seria eclipsada."
in Moacir Scliar, "A mulher que escreveu a Bíblia", pag. 151/2, Ed. Cia. das Letras, 6a. edição, 2007.