O HOLOCAUSTO BRASILEIRO

Ah... Meu pessimismo e ateísmo estavam, vamos dizer, arrefecidos... Coube à "cordialidade" do brasileiro acordá-los. Barbacena nunca mais!

Leituras que fortalecerão o nosso pessimismo.

  • "As Intermitências da Morte" de Saramago
  • "Os Ratos" de Dyonélio Machado

3.5.11

Heróis cortadores das unhas dos pés.














Me desculpem o Rodin e o Antonio Prata, mas na crônica abaixo, substituindo-se o "cortar as unhas dos pés" por "sentar-se no trono" revelaria de forma mais visível a estapafúrdia tese - encampada por democratas e tiranos e seus aparelhos midiáticos - de que o ser humano precisa de heróis para viver:

"Li a história em algum lugar: toda vez que o poderoso general romano conquistava uma cidade e, parado no alto de uma colina, contemplava a extensão de seus domínios, vinha o subordinado para lhe cochichar no ouvido: "General: és baixo, gordo e calvo". O sussurro impedia que a glória subisse à cabeça -ou à careca- do militar, trazendo-o de volta às solas de suas sandálias, à sua risível condição humana: frágil e decadente.
 Eu também tenho, instalado dentro da minha cabeça, um desses assessores. Não para me resgatar dos píncaros da glória -no meu caso, meros calombos na planície do dia a dia, dos quais os espelhos, o senso de ridículo e o passar das horas encarregam-se de me trazer de volta-, mas para rebaixar outros, a quem tendo a ver como demasiadamente poderosos, às suas chãs humanidades. Eis o sussurro, capaz de transformar qualquer herói, celebridade ou tirano no mais comum dos mortais:"Imagine-os cortando as unhas dos pés".
 É este o mínimo denominador comum da humanidade:Obama cortas as unhas dos pés, Penélope Cruz corta as unhas dos pés, Jesus, na glória de seu ministério e Hitler, no auge de seu poderio, cortavam as unhas dos pés. Eles podem comer com talheres de prata, aparentar serem feitos de outro material, andar sobre as águas ou conquistar Paris, mas numa hora morta, encolhidos no banheiro ou no quarto, se verão sozinhos, segurando os pedacinhos de unha na mão em concha, ou depositando-os sobre a capa de uma revista, aberta no chão -assim como eu, você, o Jair Bolsonaro, a Preta Gil, a tia Lurdes, de Araraquara.
 Só há um momento na vida mais ínfimo do que ao cortar as unhas dos pés: quando nos preocupamos em cortar as unhas dos pés. Imagino Obama, antes de vir ao Brasil, no meio de uma reunião. Um militar lhe pergunta:"Presidente, iniciamos os bombardeios na Líbia?". Barack demora a responder. Está com a cabeça em outro lugar:"O hotel lá no Rio é em frente à praia. Talvez eu consiga dar um mergulho.Mas...Humpf... Minhas unhas dos pés estão grandes. Será que corto hoje à noite? Ou amanhã, no Air Force One, quando a Michelle e as meninas estiverem dormindo?".
 Talvez as unhas dos pés sejam um castigo divino. Ao expulsar-nos do Éden, além de condenar o homem a comer o pão com o suor do próprio rosto e a mulher a sofrer as dores do parto, rogou-nos a seguinte praga, perdida em alguma tradução do Antigo Testamento: "e por tua insolência porei na última fronteira de tua carne pequenas lâminas, às quais terás que aparar até que o derradeiro sopro se esgote em tuas narinas; e ao podá-las, curvado sobre o teu corpo frágil, contemplarás o pó do qual viestes, o pó ao qual voltarás, e lembrar-te-ás de tua pequenez, oh, arrogante nulidade!".
 Dizem que, mesmo nos mortos, quando postos em formol, as unhas continuam a crescer. Uma última ironia divina, quem sabe? O homem, único ponto em que o universo se percebe a si mesmo, apaga-se: aquelas ignaras células de queratina, contudo, continuam seu movimento, lento e inútil, em direção aos céus.
 Pois é, general: ainda que fosses alto, magro e cabeludo, serias mais frágil que as unhas dos teus pés. Que coisa, não?"

Crônica "As unhas dos pés", de Antonio Prata, in Cotidiano, 6/4/11, Folha de São Paulo.